quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Guerra santa no centro do mundo

CLÓVIS ROSSI

Decapitação de jornalista traz o Estado Islâmico e seu fanatismo para o foco do Ocidente. Tarde demais?

Até muito recentemente, a guerra que o EI (Estado Islâmico) levava avante no Iraque e na Síria era a verdadeira guerra no fim do mundo, título de um livro de Mário Vargas Llosa sobre a guerra de Canudos no Brasil. No fim do mundo porque o Ocidente não prestava lá muita atenção a ela.
Constata a revista alemã Der Spiegel: "Foi só a ameaça de genocídio [sobre os yazidis] que levou a comunidade global a agir. Países ao redor do mundo rapidamente se uniram na batalha contra o EI, de longe a tropa jihadista mais brutal, mais bem sucedida e mais sinistra do mundo".
Agora, a decapitação do jornalista norte-americano James Foley traz a guerra para o centro do mundo. Tarde demais, acha Charles Lister (Brookings Institution), que pesquisa intensivamente a milícia radical: "Infelizmente, permitiu-se que o EI crescesse e se desenvolvesse a tal ponto que qualquer estratégia para realmente contê-lo levará anos e consumirá significativos recursos", disse à Spiegel.
De fato, o EI é hoje por hoje um exército (com de 6.000 a 8.000 integrantes na Síria e mais de 15 mil no Iraque), mas é também um Estado. Relata a revista alemã:
"O EI até oferece benefícios da seguridade social aos residentes das áreas que controla --exatamente como um país de verdade, diz Lister, da Brookings. Em qualquer região que conquiste, continua a pagar os trabalhadores locais".
Dinheiro não está sendo um problema para os fanáticos: quando conquistaram a cidade de Mossul, ficaram com US$ 500 milhões dos cofres locais, para não mencionar o fato de que cobram impostos e vendem petróleo e gás das áreas que controlam. Esse comportamento tecnocrático choca frontalmente com a fonte ideológica do EI. A milícia bebe nos dogmas de pregadores islâmicos radicais tão antigos como, por exemplo, o xeque Taqi ibn Taymiyya (1263-1328).
O jornalista iraquiano Shukur Khilkhal explica que Taymiyya exige que os muçulmanos promovam a guerra santa (jihad) contra os infiéis (e todos os Estados do mundo são considerados infiéis), os apóstatas e até contra os muçulmanos hesitantes.
É por isso que o EI declarou o califado (governo segundo as regras islâmicas) nas áreas que ocupa na Síria e no Iraque. Seria, pois, o único Estado não infiel no planeta.
Um Estado tão primitivo que, além das conhecidas regras de apedrejamento de acusadas de adultério ou o corte das mãos de ladrões, inclui proibir sorvetes ou a venda de pepinos nos mercados para não despertar pensamentos impuros.
Enfim, como disse nesta quarta-feira (20) o presidente Barack Obama, "um grupo como o EI não tem lugar no século 21".
O problema é que seus adeptos moveram-se do fim do mundo para, por exemplo, a Oxford Street de Londres, a mais movimentada rua de comércio do mundo, na qual distribuem panfletos convidando os transeuntes a se unir ao califado. Calcula-se que entre 2.000 e 3.000 jovens europeus já aceitaram o convite.
Tudo somado, vê-se que bombardear montanhas do Iraque não será suficiente para vencer a guerra. Folha, 21.08.2014.
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terça-feira, 15 de julho de 2014

Bahrein: Disputa pelo poder reacende sectarismo

POR DAVID D. KIRKPATRICK

RIFFA, Bahrein - Barricadas de concreto bloqueiam os acessos rodoviários a este próspero enclave sunita, onde soldados em veículos blindados montam guarda nas mansões da família governante e da elite empresarial.
Mais além do enclave, há aldeias pobres de xiitas, os quais perfazem 70% da população de mais de 650 mil do Bahrein. É nessas aldeias que a polícia constantemente entra em conflito com jovens.
Essas batalhas expressam hostilidades sectárias quase tão antigas quanto o islã. Ao mesmo tempo, elas também evidenciam uma nova disputa pelo poder que assola toda a região em consequência da invasão americana no Iraque e das revoltas da Primavera Árabe.
O Bahrein foi o primeiro lugar onde as reivindicações por cidadania igualitária e governança democrática da Primavera Árabe degeneraram em uma rixa sectária, que a princípio parecia uma anomalia. Mas a experiência do país agora parece ter sido um prenúncio do que viria a ser o ressurgimento de rivalidades centenárias entre muçulmanos sunitas e xiitas em grande parte da região. A situação ameaça diluir as fronteiras de Estados como Síria e Iraque, desestabiliza o Bahrein e o Líbano e acelera uma disputa regional por poder e influência entre o Irã xiita e a Arábia Saudita sunita.
Estudiosos e ativistas dizem que a atual onda de violência sectária no Oriente Médio não é apenas a eclosão de rivalidades religiosas outrora reprimidas pelos autocratas seculares no comando da região. Na opinião deles, os ressentimentos religiosos estão sendo explorados em uma luta muito terrena por poder. "Há forças que insuflam a tensão a fim de obter uma fatia maior do bolo", disse Maytham al-Salman, xeque xiita que foi torturado pela polícia bareinita em 2011 devido a seu apoio à revolta.
A Praça da Pérola, onde manifestantes se instalaram durante uma semana há três anos, tornou-se um acampamento militar permanente e teve a estátua homônima demolida, em uma recordação sombria do dia de março de 2011 em que veículos e tropas das monarquias sunitas vizinhas vieram da Arábia Saudita para esmagar o movimento pró-democracia, predominantemente xiita.
No entanto, após ser despertada, a fúria sectária pode ser imprevisível e difícil de controlar.
Desde os primeiros levantes da Primavera Árabe na Síria, por exemplo, o governo do ditador Bashar al-Assad e de seus apoiadores iranianos tentaram retratar o movimento como uma tentativa de tomar o poder por certos extremistas sunitas, a fim de insuflar cristãos e outras minorias religiosas contra ele. A Arábia Saudita e outros Estados do golfo Pérsico dominados por sunitas patrocinaram transmissões via satélite inflamando o ressentimento do Irã xiita e dos alauitas, ramo xiita ao qual pertencem os Assad. Árabes sunitas em monarquias do Golfo enviaram ajuda aos rebeldes sunitas que se tornavam cada vez mais violentos.
Agora, a revolta síria concretizou alguns dos piores temores sectários -e ameaça não só a segurança de Assad, como também a do Irã e da Arábia Saudita. Os jihadistas sunitas mais radicais, que formam o Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL), tomaram uma ampla faixa dos territórios iraquiano e sírio e se gabam de ter executado centenas de xiitas. Sua fúria os levou às portas do governo iraquiano em Bagdá, aliado dos iranianos, e da monarquia saudita, que há muito temia esses extremistas como uma ameaça a seu próprio poder interno.
Na região, porém, o ressurgimento de hostilidades sectárias entre sunitas e xiitas segue um padrão: o enfraquecimento de velhos Estados leva os cidadãos ansiosos a assumir o sectarismo, ao passo que os governantes inseguros se cercam de pessoas leais de seus clãs e denominações religiosas, sistematicamente alienando outros, muitas vezes seguindo linhas sectárias. Segundo analistas, no caso de aliados dos americanos como Bahrein e Iraque, os EUA e outras potências ocidentais fizeram vista grossa aos excessos e ao sectarismo dos governantes que apoiavam.
Os dois pesos-pesados geopolíticos da região, a teocracia xiita no Irã e a monarquia sunita na Arábia Saudita, têm buscado proteger seus interesses dando apoio a clérigos, redes de satélite, facções políticas e grupos armados seguindo linhas sectárias.
Vali Nasr, da Universidade Johns Hopkins em Maryland, disse que a Arábia Saudita e o Irã fazem uso de uma política externa sectária para atingir objetivos tipicamente seculares. "Eles fazem o jogo da política do grande poder, e as peças de xadrez que escolhem inflamam o sectarismo", afirmou.
O racha entre sunitas e xiitas começou no século 7°, após a morte do profeta Maomé. A facção dominante, que deu origem aos sunitas, queria que a liderança fosse passada a Abu Baker, sogro de Maomé. A facção que originou os xiitas era a favor de Ali, primo e genro de Maomé. Atualmente, os xiitas compõem cerca de 15% do 1,6 bilhão de muçulmanos no mundo, embora formem as maiorias no Irã, no Iraque, no Bahrein e no Azerbaijão e sejam numerosos no Líbano.
Sunitas e xiitas conviveram bem, casando-se entre si e fazendo alianças políticas, em várias épocas. Muitos sunitas, porém, ainda acham que os xiitas não são verdadeiros muçulmanos, ao passo que xiitas se queixam de séculos de perseguição.
No Iraque, que está de volta às manchetes, muitas pesquisas mostraram consistentemente que a maioria dos sunitas e dos xiitas era a favor da coexistência, descrevendo seu país como "na maior parte, unificado". Porém, com o monopólio do poder pelo primeiro-ministro Nuri Kamal al-Maliki e o aumento dos abusos aos direitos humanos nos últimos anos, a unidade nacional enfraqueceu.
No Bahrein, há sinais de violência crescente e de envolvimento iraniano. Muitos integrantes dos partidos de oposição bareinitas dizem que sua única esperança é uma paz regional que inclua a Arábia Saudita e o Irã.
Certos líderes da oposição argumentam que, embora o Bahrein possa se tornar o próximo barril de pólvora a explodir, o emirado ainda tem chance de vir a ser um modelo de poder compartilhado.
Khalil al-Marzooq, do principal partido xiita, indaga: "Por que esperar até que haja um verdadeiro desastre?". NYT, 15.07.2014

    quinta-feira, 3 de julho de 2014

    KENNETH MAXWELL - Tumulto no Oriente Médio


    Às vésperas do Ramadã, o Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL), um grupo jihadista extremista, capturou territórios no Iraque e na Síria, decretou a eliminação das fronteiras entre eles e estabeleceu um califado visto por muitos muçulmanos como herdeiro do poder exercido por Maomé. O primeiro califado foi criado no século 7º. O último califado otomano foi abolido em 1924. O líder do EIIL assumiu o nome de Abu Bakr al Baghdadi e se faz chamar de califa Ibrahim.
    O EIIL está ativo na Síria e no Iraque desde 2004, mas o surpreendente sucesso que o movimento teve nos campos de batalha nos últimos 30 dias, com a desintegração do Exército iraquiano nas regiões sunitas do norte e oeste do país, deixando para trás todo o equipamento fornecido pelos Estados Unidos, causou choque no Oriente Médio e no mundo todo. O EIIL já contava com boas verbas e controlava campos de petróleo capturados no leste da Síria. Agora tem dinheiro saqueado de bancos iraquianos. O movimento capturou Mosul, importante cidade do Iraque, e a refinaria de petróleo de Baiji. Em seguida, tomou Tikrit, cidade onde Saddam Hussein nasceu.
    Combatentes curdos se deslocaram para as fronteiras da região curda e assumiram o controle da província de Kirkuk. O Curdistão está isolado de Bagdá pelos insurgentes sunitas. Os curdos objetam há muito à política sectária e à falta de recursos do governo xiita de Bagdá, comandado pelo premiê Nouri al-Maliki.
    As vitórias do EIIL criaram estranhas parcerias. O Irã apoia os xiitas em Bagdá e o mesmo vale para o sitiado regime alauita de Assad na Síria. Os EUA realizam voos com drones (aviões não tripulados) no Iraque e enviaram 300 homens das forças especiais para avaliar as condições e as necessidades das Forças Armadas do país. O Irã também enviou drones e assessores.
    Mas a Rússia entregou cinco caças Su-30K e enviou especialistas a Bagdá. Os EUA ainda não forneceram os caças F-16 prometidos, cuja entrega foi postergada para setembro ou outubro pelo Congresso, tampouco os helicópteros de ataque Apache prometidos, cujos pilotos requererão meses de treinamento.
    Obama quer um governo de unidade com todas as facções em Bagdá. Mas Maliki não está inclinado a renunciar, e curdos e sunitas não estão dispostos a aceitá-lo. Enquanto Obama pondera, o Iraque queima. E queima por conta dos erros políticos e dos erros das ações americanas do passado. Queima também pela ausência atual de uma resposta efetiva por parte de um governo aprisionado em impasses políticos e preocupado com questões internas em Washington.
    Desta vez, o tempo, a estratégia e a história não estão do lado dos EUA. Folha, 03.07.2014.
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    terça-feira, 17 de junho de 2014

    INTELIGÊNCIA - ROYA HAKAKIAN: Revolução inacabada

    Nas últimas semanas, enquanto líderes dos Estados Unidos e da União Europeia participavam de negociações nucleares com o Irã, outra discussão era travada no ciberespaço entre mulheres iranianas e cidadãos do mundo.
    Iranianas corajosas tiraram seus véus e posaram para as câmeras, numa campanha intitulada Minha Liberdade Furtiva. Enquanto autoridades ocidentais se esforçavam para impedir Teerã de conseguir "a bomba", a campanha das mulheres desencadeava uma explosão própria e provocava uma resposta agressiva do governo.
    O regime que queimou efígies de Tio Sam e vendou reféns, como se recordam pessoas que assistiram à Revolução Islâmica de 1979 acontecendo na televisão, hoje é ofuscado por suas cidadãs mulheres. A campanha das mulheres mostrou que, embora a República Islâmica possa estar oficialmente no comando, seu esforço de 35 anos para impor sua ideologia sobre metade da nação fracassou, na maior parte.
    Para retaliar as imagens de centenas de mulheres sem véu postadas no Facebook, Teerã prendeu jovens que postaram no YouTube um vídeo em que dançavam ao som de "Happy", de Pharrell Williams. A dança aconteceu sobre um dos telhados em que foi encenado o espetáculo histórico do aiatolá Ruhollah Khomeini entoando "Allah-akbar" em 1978, nos dias que antecederam a queda do xá.
    Assim como o movimento dos direitos civis é importante para o entendimento da outra parte dos EUA, a história da luta de quase cem anos em torno do "hijab" é importante para a compreensão do Irã oculto. Quando o país foi modernizado, na primeira parte do século passado, o xá Reza Pahlavi, em 1936, instruiu seus gendarmes a arrancar os véus das cabeças de mulheres em público.
    A abolição do véu e a dessegregação por gêneros definiu o governo de Pahlavi e se tornou o éthos do Irã moderno. Nos dias emocionantes de 1978, quando o zelo revolucionário dominou a nação, a maioria das vozes seculares abraçou o hijab como símbolo da rejeição da monarquia e seus valores.
    Se acompanhamos a história do véu no Irã, podemos acompanhar o fracasso do movimento democrático no país. A liderança secular posicionou-se contra o clero na maioria das questões, incluindo a liberdade da imprensa e de expressão. Mas, quando se tratou da liberdade de vestimenta das mulheres ou da proteção dos direitos das mulheres, ela a considerou menos urgente que questões como um potencial golpe apoiado pelos EUA contra o regime ainda nascente. Na formação de uma coalizão com o clero contra o xá, o hijab foi uma concessão fácil para a oposição secular, dominada por homens, fazer a Khomeini.
    Dias após a revolução de 1979, Khomeini deu a ordem de reinstauração do véu compulsório. Um grupo pequeno mas eficaz de mulheres, acompanhado por algumas ativistas francesas e pela feminista americana Kate Millett, promoveu uma manifestação contra o decreto, em 8 de março de 1979, e obrigou Khomeini a recuar.
    O véu só foi instaurado como lei em 1983. Naquela manifestação histórica, um repórter perguntou a Millett o que achava da posição do aiatolá em relação ao código de vestimenta islâmico. Millett, que posteriormente foi detida e expulsa do país, lançou um olhar indignado para a câmera e tachou o homem mais venerado do Irã de "machista".
    Feita na esteira de uma revolução que seus famosos colegas intelectuais de esquerda tinham saudado como anti-imperialista, sua declaração foi presciente. Enquanto as escolas, os ônibus e os teatros do Irã foram segregados e as mulheres foram proibidas de atuar na maioria das carreiras de direito, medicina e engenharia, a misoginia era minimizada, tachada de nada mais que a petulância feminista de praxe. As mulheres perderam o direito de viajar e se divorciar. Nos tribunais, o valor do testemunho de uma mulher em um julgamento criminal caiu para metade do de um homem. Milhões de mulheres foram relegadas à cidadania de segunda classe, mas a intenção nociva de Khomeini ainda era medida pelo medo que ele suscitava no Ocidente, não pelo mal que causava às mulheres em seu país. Ele foi descrito como terrorista, fundamentalista e megalomaníaco religioso, mas raramente como misógino.
    Hoje, a campanha Minha Liberdade Furtiva revela que a declaração acalorada de Millett anunciou a verdadeira ordem que se esconderia sob o véu do nome de República Islâmica: o apartheid de gênero. Disfarçado sob o manto do islã, o tipo de misoginia de Khomeini inspirou intenção nociva em outros da região, convertendo-se em um monstro onipresente e de muitas cabeças: na praça Tahrir, ele estuprou mulheres manifestantes; no Paquistão, disparou contra Malala; na Nigéria, roubou quase 300 meninas de uma escola.
    Passadas décadas do governo do xá, as mulheres iranianas estão retomando furtivamente a liberdade que a monarquia certa vez lhes outorgou à força. Para esta geração, a meta não é abolir o véu, já que muitas iranianas ainda o abraçam, mas proteger legalmente a opção de usá-lo ou não. Até agora, seu espetáculo virtual bem-sucedido -com centenas de milhares de "curtir" no Facebook- e a cobertura da mídia não constituem uma vitória, pois uma vitória no ciberespaço é etérea.
    Uma vitória real tem suas raízes numa campanha dotada de visão, valores, estratégia e uma identidade forte. Aquelas que combatem precisam ligar os pontinhos da irmandade feminina global, de modo a transcender o mero espetáculo e iniciar um movimento real. Os cidadãos do mundo real não podem limitar seu apoio a um simples sinal de positivo na mídia social. Uma nova geração de Kate Milletts precisa enxergar mais além da cortina de fumaça religiosa instalada pelos misóginos para mantê-la à distância. O pessoal ainda é político, sem dúvida. Mas agora também é global. NYT, 17.06.2014

    quinta-feira, 29 de maio de 2014

    Copa do Alcorão: No Irã, representantes de 70 países disputam quem melhor recita o livro sagrado do islã; país usa a competição para se promover

    SAMY ADGHIRNI - DE TEERÃ
    Jorge Ezequiel Diaz, 26, viajou de Buenos Aires até Teerã para participar da Competição Internacional do Alcorão, que reúne a cada ano na capital do Irã os maiores mestres na arte de recitar e decorar o livro sagrado do islã.
    Mas o argentino, inscrito na categoria leitura, não foi páreo diante de concorrentes mais preparados. "O nível é alto demais", suspirou, após declamar um trecho definido por sorteio.
    Jorge foi eliminado porque o júri questionou seu sotaque em árabe, língua original do Alcorão, que ele não fala. Os árbitros também acharam que ele errou na ênfase ao pronunciar a palavra Alá.
    O argentino foi um dos 106 inscritos na 31ª edição da competição, que se encerra na próxima segunda, após uma semana de disputa num centro de convenções. Mulheres não participam.
    Neste ano, o concurso tem representantes de 70 países, incluindo Reino Unido e Canadá. Não há brasileiros.
    A disputa é promovida pela Organização para Doações e Caridade, controlada pelo líder supremo, aiatolá Ali Khamenei.
    Todas as despesas dos participantes, de traslado aéreo a alimentação, são bancadas pela organização como parte da estratégia iraniana de estender seu "soft power", o poder geopolítico pela persuasão e pela empatia.
    O Irã convidou até um participante da Colômbia, país sem embaixada em Teerã.
    "Estou aqui para aprender. Quero dedicar minha vida ao islã", diz o colombiano Hernando Diaz, 27.
    Apesar de o Irã ser o maior propagador do xiismo, ramo minoritário no islã, candidatos sunitas se dizem bem recebidos. "Iranianos têm sido muito gentis. Até o hotel é bom", afirma o sunita Hamid Ahmed, 37, do Níger.
    A maior parte dos candidatos são craques do tajwid --a ciência da recitação do Alcorão-- em seus respectivos países. Outros são detectados por "olheiros" mundo afora e incentivados a mandar uma gravação de voz como teste.
    O prêmio final equivale a US$ 13 mil (R$ 28 mil) para o vencedor de cada categoria.
    Na prova de recitação, o júri avalia dicção, emoção e controle de respiração em versículos que podem se estender por meio minuto. A leitura se assemelha a um canto pausado e melancólico.
    Na categoria memorização, o candidato tem um dia para decorar um trecho, também definido em sorteio.
    "O nível dos participantes ocidentais aumentou muito nos últimos anos", diz o clérigo Seyed Masoud Mirian, chefe do comitê de seleção.
    Os favoritos são participantes dos países de maioria muçulmana, principalmente aqueles que falam árabe.
    ABISMO
    Não é preciso ser perito, por exemplo, para notar o abismo entre o candidato egípcio, clérigo profissional de canto envolvente e cristalino, e o chinês, cuja voz parecia oscilar a cada frase.
    Concorrentes se revezam num palco diante de um plenário cujas mesas são enfeitadas com bandeiras dos países participantes.
    A performance ocorre sob olhar grave de dois enormes retratos dos líderes supremos do passado e do presente, Khomeini e Ali Khamenei.
    O texto declamado aparece num telão eletrônico em árabe, farsi e inglês. Não há aplausos.
    O júri, composto por 15 membros, acompanha numa sala separada, olho grudado na transmissão ao vivo da TV estatal.
    As provas são abertas ao público, que circula livremente pelo local e pode falar com os participantes. O plenário tem área reservada às mulheres, quase todas cobertas com o véu preto integral que identifica origem social conservadora.
    "Gosto muito da atmosfera espiritual deste evento", diz a dona de casa Leila, 30.
    Alguns competidores, porém, não escondiam a decepção pelo fato de o presidente Hasan Rowhani, um clérigo, não ter aparecido na cerimônia de abertura.
    "Estávamos todos na expectativa de vê-lo", lamentou o argentino.
    A ausência alimenta especulações de disputas internas entre Rowhani, favorável à relativa liberalização, e seus adversários ultraconservadores, alguns dos quais são associados ao líder supremo. "O presidente não aceitou nosso convite", diz Bagheri Karim, do comitê organizador. Folha, 29.05.2014.

    terça-feira, 20 de maio de 2014

    Manifestantes em Teerã protestam contra "véus errados"

    Por THOMAS ERDBRINK
    TEERÃ - Motoristas buzinavam freneticamente em seus carros, enquanto homens e mulheres vestidas com o chador preto brandiam os punhos ao abrir caminho pelo intenso tráfego matutino, esbravejando para que o governo prenda mulheres que não estejam devidamente cobertas.
    "A corrupção e a imoralidade engoliram a nação", disse uma mulher, Shala Mousavi, a um repórter da rede de TV estatal iraniana. "Somos forçados a agir".
    Os manifestantes tomaram a praça Fatemi, no centro da cidade, desafiando a proibição governamental a protestos não autorizados previamente.
    Agentes da polícia ficaram de prontidão em meio aos manifestantes que bloquearam o trânsito para exigir medidas mais duras contra mulheres que desrespeitem o código de vestimenta islâmico do Irã, principalmente agora que o verão está chegando no país. Em termos numéricos, o protesto sobre o código de vestimenta, organizado por um seminário xiita em Qom, foi insignificante.
    Mas o fato de a manifestação ter sido permitida levou muitos a concluírem que forças poderosas estão conspirando para minar as frequentes promessas do presidente Hasan Rowhani de conceder mais liberdades individuais.
    Essa frente na longa guerra cultural entre os radicais e os reformistas do Irã se concentrou em um dos pilares da Revolução Islâmica: o véu para as mulheres.
    No país, todas elas são obrigadas a cobrir a cabeça e usar um casaco, de preferência até um pouco acima do joelho, em público, incluindo dignatárias e turistas estrangeiras.
    O Estado não determina formas exatas, cores ou tamanhos para os véus e casacos, por isso muitas iranianas criaram conjuntos combinando casacos apertados e echarpes fluorescentes do tamanho de um lenço, de onde mechas de cabelo caem em cascata.
    Os radicais frequentemente acusam algumas mulheres de "perambular pelas ruas praticamente nuas". As roupas ocidentais também são desconfortáveis, disse um importante aiatolá.
    "Vestindo roupas apertadas, algumas não podem sentar ou ficar em pé facilmente. Tais vestidos são prisões, e não roupas", disse Naser Marakem Shirazi em um comunicado. "Nossa cultura de vestimenta precisa ser mudada."
    O Estado promoveu debates com clérigos na televisão para tentar convencer as mulheres a se cobrirem totalmente, destacando que a exposição de mechas pode levar a "depravações morais".
    Recentemente, apareceram em Teerã cartazes mostrando a iguaria nacional do país, o pistache, com um texto dizendo que tudo o que é bom vem embrulhado numa casca, assim como o véu, o "hijab".
    "Mas isso não está funcionando", disse uma mulher durante o protesto, fazendo referência à abordagem educacional em relação ao "hijab". "Todo verão, os 'hijabs errados' aparecem de novo. É simplesmente terrível."
    Masoumeh, como ela se identifica, e algumas amigas do seu bairro, Yaftabad, alugaram um ônibus para irem à manifestação "a fim de acabar com essa situação".
    Enquanto ela falava, um homem calvo, contrário ao protesto, aproximou-se e disse: "Deixem-nos em paz. Tenho vergonha de que você seja iraniana", e foi embora. "Que você fique careca para sempre", retrucou ela, fazendo suas amigas caírem na gargalhada.
    A solução, "infelizmente", segundo Masoumeh, é dar plenos poderes à polícia da moralidade.
    Diante de uma sociedade em transformação, onde mais pessoas estão focadas em direitos individuais do que em tradições, o Judiciário do Irã e a polícia criaram em 2005 a "Gashte Ershad", ou patrulha de orientação, para fazer valer o código de vestimenta. Há anos esses agentes abordam mulheres que não estariam devidamente trajadas. Seus pais, maridos e irmãos precisam ir à delegacia para liberá-las.
    Durante sua campanha, em junho, Rowhani prometeu retirar essas odiadas forças das ruas.
    Em visita a uma feira de livros, quando Rouhani disse que "pessoas cultas não precisam de orientação", Ismael Ahmadi Moghaddam, comandante da polícia, respondeu que "as pessoas incultas é que precisam de orientação".
    No dia seguinte, a polícia da moralidade apareceu. Há indícios, porém, de que os radicais podem ter um verão difícil pela frente. Uma nova página do Facebook traz fotos de iranianas sem seus lenços, em passeios turísticos.
    Mais de 135 mil pessoas curtiram a página "Liberdades Furtivas de Mulheres Iranianas" nos seus primeiros nove dias no ar.
    Os administradores da página são anônimos, e a foto da capa, no topo da página, diz "Somos apenas nós mesmas". NYT, 20.05.14